Por Cylene Dworzak
E lá fui eu ontem aproveitar o sol da tarde pra estender roupa. Divido o quintal com outra casa, para onde recentemente se mudou dona Conceição, uma senhora de 70 e tantos anos que vive sozinha.
Enquanto eu pendurava as roupas, dona Conceição chegava do mercado com tomates, cebolas, verduras e frangos. “Dos 30 reais que o pessoal da igreja me arrumou ontem”, disse ela. Terminei minhas roupas, sentei, fumei um cigarro e dona Conceição ainda falava.
Agora, falava do marido, com quem ficara casada por quase 10 anos. “Ele saía de casa na quinta-feira e só voltava na segunda à tarde, cheirando a perfume e batom. Eu não falava nada e, quando eu ameaçava reclamar, ele ameaçava me bater”. Fui ouvindo a história de dona Conceição cada vez mais chocada.
Por todos os abusos que aquele homem cometera, por todas as vezes que os olhos dela encheram de lágrimas enquanto me contava sua história. Não escorreu uma lágrima, talvez já não tivesse mais.
“Eu mantinha as roupas dele limpas, passadas e sempre arrumadas. A casa cheirosa, comida pronta. E ele chegava, ainda depois de tudo isso, se trancava no banho e depois caía no sono. Quando acordava, saía de novo. Mal falava comigo e quando falava era gritando, ameaçando”. Não aguentou mais aquilo e voltou pra casa do pai.
Enquanto continuava contando sua vida de desgraças, dona Conceição separava de sua compra dois tomates, uma cebola e dois limões. Me deu. Aceitei, mas propus fazer uma salada e um arroz que pudesse acompanhar o frango que ela já cozinhava. Ela aceitou. Quando voltei, a cozinha já cheirava e dona Conceição fritava mandioca.
Tornou a falar. Contou que casou novamente, dessa vez com um que gostava dela. Mas engravidou e “pegou nojo do rapaz”, se afastou e, durante uma viagem dele ao garimpo, ela fugiu para o Mato Grosso. Lá, foi obrigada a trabalhar em regime de escravidão em fazendas, até conseguir fugir com o irmão. Trabalhou em casas de família e, pouco antes de ter o filho, voltou a São Paulo. Com pouco dinheiro e uma gestação complicada, o menino nasceu fraquinho. Ela cuidou, fez o que pôde, mas com 1 ano e 23 dias, por complicações de uma infecção, a criança morreu.
Dona Conceição engole a comida com dificuldade. Depois de uma pausa, me olha e diz que foi por Deus mesmo; não era pra ter filhos, teriam sofrido mais que ela. “Ruindade de homem deixa a gente mais forte minha filha. Eu era uma inocente, uma boba. Hoje tem lei que protege a mulher. Na minha época eu sofria quieta.”
Hoje dona Conceição é ajudada por um grupo da igreja que frequenta. São eles que pagam o aluguel, fazem as compras e cuidam dela. Ela sente saudade do cachorro e dos três gatos que deixou no barraco de beira de estrada onde morava. “Sei que estou melhor aqui, mas sinto falta deles perto de mim.”
Terminamos o almoço lá pelas cinco da tarde, ela insistiu que eu levasse o resto do frango. “Assim você já tem janta!”, disse ela. “E escolha muito bem, minha filha”, disse ela enquanto eu subia a escada, “Hoje vocês têm escolha!”. Olhei pra baixo, ela sorriu.